terça-feira, janeiro 07, 2014

por Eusébio

Nunca dei boleia ao Eusébio, não tenho nenhum autógrafo (apenas porque a primeira vez que falei com ele foi como jornalista estagiário do Público), nem tão pouco fui almoçar ao Ti Matilde para o ver. Mas lembro-me perfeitamente quando o comecei a admirar.
Foi na década de 90, o meu pai falava-me maravilhas do King mas só lhe dei ouvidos quando vi as primeiras imagens de arquivo na televisão. A velocidade, a elegância, o remate explosivo e certeiro, a eloquência e generosidade a jogar - era diferente de todos os outros em campo, um ET, superior, cavalheiro e felino (em Inglaterra chamam-lhe, quem o viu jogar ao vivo, de protótipo do jogador do século XXI). Fora de campo reinava a simplicidade e genuinidade. Poucas pessoas são tão genuínas como Eusébio. Era fácil encontrá-lo por Lisboa, da mesma forma que sabia onde encontrar o meu bisavô Abílio. Sempre com um sorriso, disponível e genuíno. Era como ter um mito vivo e disponível ao virar da esquina, entre a Luz, os jogos da selecção e o Ti Matilde.
A primeira vez que o vi andava na faculdade há pouco tempo - um puto caldense acabado de chegar à capital - , ia no autocarro e vi-o junto a um stand de automóveis em Sete Rios com ar de quem ia comprar. Fiquei nervoso, a lenda estava ali, e admiti passar por lá depois de sair na paragem. Passei mesmo mas não tive coragem de interromper, fiquei só com o dia ganho e a satisfação de quem pensa, feliz: 'wow, em Lisboa ver o Eusébio é quase como ver o meu avô Abílio!'
Uns anos mais tarde fui ao novo estádio da Luz, antes da inauguração oficial, com a missão de reportar os testes de segurança em que 5 mil crianças eram as cobaias. O evento contou com o Shéu e o Eusébio e no meio da maralhada de alguns jornalistas deu para ouvir algumas palavras do Rei da bola. Fiquei orgulhoso mas surpreendido e a achar que Eusébio não possuía o dom da fala.
Nervoso e a dizer os clichés da bola, parecia-me alguém pouco à vontade com o discurso formatado. Também me surpreendeu ver os colegas experientes tirarem algumas palavras e irem-se embora.
Eu fiquei por lá, ao lado dele, ao ponto de me obrigar a fazer perguntas por mim próprio ("és um jornalista ou uma amêba"). A minha pequena desilusão mudou quando o pus a falar dos golos no antigo estádio, nas memórias e nos tempos áureos. A cara iluminava-se com um sorriso contagiante, o discurso era mais fluido e entusiasmante e Eusébio revelava-se bem para lá das limitações da conversa institucional.

Passados uns meses, era eu jornalista wannabe a fazer algumas coisas em freelance, a cobrir o Euro2004 para o Publico.pt e ao mesmo tempo a fazer um part-time na Vodafone no atendimento telefónico ao cliente quando falei com Eusébio ao telefone. Vejo no ecrã (do atendimento da Vodafone) a chamada de uma conta do Benfica com o seguinte comentário associado ao número: EUSÉBIO. Fiquei na dúvida. 'Será?' Atendi e era mesmo ele. SORTE! Não escondi a voz 'sorridente'. Ele ligou para o serviço da Vodafone a pedir umas dicas sobre o telemóvel da marca Ericssen com um cartão italiano e pertencente a um amigo dele italiano (na altura Trappattoni treinava o Glorioso).
Tive de partilhar o momento com a malta mal me despedi do King com um "até à próxima".
É incrível imaginar que aquilo que um jovem moçambicano-português fez nos anos 60, acima de tudo nos 60, teve um impacto tão grande em tantas pessoas de culturas tão diferentes ao ponto de passarem essa admiração às gerações que se seguiram. É um legado épico para alguém que não conquistou à força povos, não descobriu novos mundos, 'só' era genial com uma bola nos pés e servia de inspiração a um povo a precisar de inspiração e até aos jogadores e 'povos' adversários. Ainda hoje é tocante ler textos comoventes escritos já em 2014 por jornalistas e jogadores ingleses que o viram jogar e que não esquecem a aura que o Pantera Negra tinha. É uma aura eterna, enquanto existir memória e ela for transmitida.

Mas a força de Eusébio entrava nos relvados e nos nossos corações mesmo sem jogar, sem brincar com a bola e mandá-la com estrondo para o fundo das redes - golo de Eusébio tinha de fazer estrondo nas redes e 'deus sabe' como eu bem tentei repetir esse estrondo nas redes durante os treinos que fiz no Caldas Sport Clube.
Não esqueço de como me emocionei quando Eusébio e a sua toalha inspiraram o Ricardo 'vozinha fina' a defender e marcar penáltis como um Rei Eusébio no Euro2004, frente à Inglaterra. No final, quando os dois se abraçaram, havia lágrimas de Ricardo, Eusébio e minhas, claro.
Não me esqueço de sentir na cara dele a tristeza quando fomos encavados pela França ou quando o vi ao lado de um Figo de blazer e a camisola 7 de Portugal vestida na bancada (o Rei já com dificuldades em se levantar para festejar) a comemorar um golo da Selecção frente aos checos no Euro2008.
Ele estava sempre lá a servir de inspiração a quem estava no relvado e a quem estava fora... E a cara dele era sempre um retrato da alegria ou da frustração de um povo unido à hora do jogo.

Em Novembro voltei a vê-lo, no Museu Benfica, literalmente atado (nas pernas) a uma cadeira de rodas, cansado e consumido pela debilidade física. Fiquei triste por ele. Ele ia ouvindo, mas pouco, o frete institucional. Despertou junto às duas taças dos Campeões Europeus, quando se começou a falar de bola finalmente sorriu e ainda tirou dúvidas a quem quis ouvir sobre o que era jogar naqueles tempos. Adeus e obrigado, Eusébio. Serás lembrado com admiração e carinho e vais fazer falta na Luz, em Lisboa, na Ti Matilde e num dos próximos duelos decisivos da equipa que joga futebol por Portugal.